Google images: Museu da Revolução de França

Quem é Emmanuel-Joseph Siéyès?

Emmanuel-Joseph Sieyès, também conhecido como Abade Sieyès, nasceu em Fréjus (junto ao Mediterrâneo francês), em 3 de maio de 1748 e morreu no dia 20 de junho de 1836, portanto, com 88 anos. Uma longevidade notável para a época.

Escreveu a obra “O Que é o Terceiro Estado?”, com 40 anos, em 1788. A verdadeira razão deste escrito permanece um mistério ainda indecifrável para os historiadores. Todavia, 1788 seria o ano do prelúdio de uma tragédia revolucionária francesa que iria mudar a Europa para sempre. E o Abade Sieyès, com esta obra, decisivamente contribuiu para o sucesso da sua realização, assim como para a configuração de todas as constituições europeias ou modernas de tipo liberal, como a portuguesa. Veremos como.

Wikipedia: Retrato Emmanuel-Joseph Siéyès

Influência e confluência norte-americana

O advento da revolução francesa não se teria, provavelmente, verificado se já não tivesse ocorrido todo um processo político e intelectual acumulado, toda uma sinergia histórica de atos e ideias, donde sobressai claramente a revolução americana, decorrida, grosso modo, entre 1777-1787.

A influência norte-americana não foi somente de ordem histórica, política e intelectual, mas saiu reforçada pela amizade soberana entre os dois povos, a qual promoveu a abertura americana relativamente às ideias e intelectuais da nação aliada do outro lado do Atlântico, pois, recorde-se que os franceses lutaram na guerra da independência dos (futuros) EUA, ao lado dos norte-americanos, contra os ingleses.

Entre os fatores críticos elo de ligação entre as duas revoluções, destaca-se o fator económico, habitualmente inserido nas causas das revoluções, à qual a francesa não escapa. Com efeito, foram os enormes gastos na ‘guerra norte-americana’ que levaram o monarca francês Louis XVI a convocar os famosos e esporádicos Estados-Gerais para maio de 1989, a assembleia parlamentar esta mental da França, na esperança de que os representantes aprovassem o reforço dos rendimentos régios e públicos.

Wikimedia Commons: Pintura Revolução Francesa 1789

Ora, o clero (o primeiro estado) e a nobreza (o segundo estado) não aceitavam pagar impostos, pelo que restava a classe baixa, o “povo”, incluindo baixo clero e nobreza, ou seja, o “terceiro estado”, que era tributado até mais não. É nesta altura que surge um panfleto, intitulado “O que é o Terceiro Estado?”, escrito meses antes do início da revolução, em janeiro de 1789, por Emmanuel de Sieyès. A obra capta uma generalizada aceitação e trata com particular acutilância a situação de extrema penúria de uma classe acossada pelas demais, quando, na verdade, estas vivem e dependem do labor da classe dominada e atuam sempre de forma concertada em matérias de poder político, anulando qualquer posição parlamentar, e assim eficácia da representação, do terceiro estado.

“O que é o Terceiro Estado?”

 O início da obra é um célebre clássico da literatura política. Curiosamente, a estruturada obra obedece às suas primeiras palavras:

ESTRUTURA

Capítulo I – O Terceiro Estado é uma Nação completa

Capítulo II – O que é o Terceiro Estado tem sido até ao presente? Nada.

Capítulo III – Que pede o Terceiro estado? Ser algo.

Capítulo IV – O que o Governo tem feito e o que os privilegiados propõem a favor do Terceiro Estado.

Capítulo V – O que deveria ter sido feito. Princípios a respeitar.

Capítulo VI – O que falta fazer. Desenvolvimento de alguns princípios.

INTROITO

O plano deste trabalho é bastante simples. Vamos fazer-nos três perguntas:

1.ª O que é o terceiro estado? Tudo.
2.ª O que tem sido, até ao presente, na ordem jurídica? Nada.
3.ª O que pede ser? Ser alguém. Veremos se as respostas são justas.

De seguida, examinaremos os meios que se têm ensaiado, e os que se devem adotar, a fim de que o terceiro estado venha, efetivamente, a ser algo. Neste sentido, exporemos:

1.º O que têm tentado os governantes, e o que os próprios privilegiados propõem a seu favor.
2.º O que deveria ter sido feito.
3.º Por último, o que está por fazer pelo terceiro estado para ocupar o lugar que lhe é devido.

Na primeira parte, Sieyès tenta definir o que é o terceiro estado, especialmente em função da sua utilidade social, ao contrário das outras ordens, particularmente a Nobreza.

Depois, demonstra que o terceiro estado não tem significado na ordem política. São 25 milhões cabeças, contra cerca de 110 000 nobres e 80 000 pertencentes ao Clero. Assim, os «privilegiados» não representam mais do que 2% da população francesa e, no entanto, são quem detêm todos os poderes públicos.

Sieyès tenta justificar a terceira petição do terceiro estado no seu escrito: ser algo. Daí que seja inadmissível, para Sieyès, que o terceiro estado esteja pouco e mal representado nos Estados-Gerais, sobretudo porque as decisões são tomadas por ordem (cada estado tem uma voz), o que se traduz em que haja, por parte dos privilegiados, sempre dois votos contra um.

Assim, Sieyès reivindica 3 coisas:

 1.º Que os representantes do Terceiro Estado não sejam eleitos dentre os cidadãos que não pertencem a ele verdadeiramente;

2.º Que os seus deputados sejam iguais em número aos outros que representam as classes privilegiadas;

3.º Que os Estados-Gerais votem, não por classes, mas por cabeças.

Na segunda parte da obra, Sieyès apresenta um balanço daquilo que tem sido feito pelo terceiro estado para merecer o lugar que ele merece. Expõe ainda o que deve ser feito: a feitura de uma constituição, emanada da Nação (e não dos Estados-Gerais).

Por último, o que falta fazer ainda pelo terceiro estado. A profética ideia de Sieyès é esta: o terceiro estado deve constituir uma Assembleia Nacional, em vez dos Estados Gerais, sem as duas ordens privilegiadas, pois estas são exteriores à Nação.

Google images: Livro “O Que é o Terceiro Estado?

Estas ideias eram bastante ‘revolucionárias’ para a época, e suscitaram larga difusão e influência na opinião pública de Paris.

Como ocorre em todos os feitos humanos, vários foram as ideias e obras que influenciaram o pensamento de Sieyès. Ele inspirou-se na doutrina dos contratos sociais e dos direitos originários e inalienáveis dos cidadãos de John Locke (1632-1704), para invocar o direito natural e assim fortalecer a ideia de exclusão e dos privilégios. Uma nação “é um corpo de associados que vive sob uma lei comum e representados pela mesma legislatura”, escreveu ele, ou seja, a nobreza é exterior à associação, pois ficava fora da lei comum.

Foi buscar a Montesquieu (1689-1755) a doutrina da separação de poderes, no “Espírito das Leis” (1748), a Quesnay (1694-1774) o pensamento fisiocrático, doutrina económica que está na origem do liberalismo económico e que surge na Europa na segunda metade do Séc. XVIII em oposição às teorias defendidas pelo mercantilismo. O fisiocratismo sustenta que a propriedade fundiária (a terra, a agricultura) era a verdadeira e principal fonte de criação de riqueza e de estatuto social.

Também se inspirou na teoria da igualdade de J.J. Rousseau (1712-1778), fundada na oposição aos ‘privilégios’ da aristocracia, feito sobretudo no “Discurso sobre a Desigualdade” (1755), no seu título abreviado. Sieyès não advoga o sufrágio universal de Rousseau, antes o regime censitário (com fundamento, portanto, na propriedade), sustenta a igualdade e a universalidade, embora dentro dos cidadãos ativos. Siéyes defende o conceito de representação, mas não fundado no status.

Voltaire (1694-1778) e as suas “Cartas Filosóficas” (1733) influenciaram Siéyès a não distinguir entre uma sociedade alienante e um indivíduo oprimido (ideia defendida por Rousseau), mas crê, antes, num sentimento universal e inato da justiça, que tem que observar-se nas leis de todas as sociedades. Esta visão de Voltaire sobre a vida em comum, exigindo esta uma convenção, um contrato social para preservar o interesse de cada um, viria a ser também determinante para o pensamento e a escrita de Sieyès.

Ora, o livro «Qu’est-ce que le Tiers-Etat?» é um sucesso ao tempo da sua publicação. Dezenas de milhares de exemplares foram vendidos, obrigando o editor a fazer quatro edições. As três primeiras foram anónimos e só a última foi assinada por Sieyès. Mal saberia ele que as suas ideias publicadas nesta obra iriam determinar o futuro constitucional da França e, de certa maneira, de grande parte da Europa Ocidental, incluindo Portugal.

Importância e atualidade científica de Sieyès

No estado de natureza a defesa e execução dos direitos naturais é precária e dependente das relações de força existentes. Daí que os indivíduos, em condições de igualdade, celebrem entre si um contrato social, criador de poderes públicos de natureza legislativa, executiva e federativa. Dessa forma passa-se do estado de natureza para o estado civil. No estado civil, os indivíduos conservam os seus direitos naturais, transferindo para o governo civil apenas o direito executivo dos direitos naturais. No pensamento de John Locke, a garantia dos direitos naturais é considerada o sentido, o objectivo e o limite da actuação do Estado. Este é visto como tendo a sua origem no poder supremo (supreme power), entendido como o consentimento dos cidadãos livres e iguais.  

Um relevo particular assume a teorização empreendida por Emmanuel de Sieyes. Para ele, a Nação identifica-se com o terceiro estado, a classe radicionalmente oprimida e espoliada, reduzida a nada pelas classes dominantes, o clero e a nobreza. Em seu entender, uma reforma política profunda só será possível ser as outras classes forem reduzidas a nada e o terceiro estado passar a ser tudo, devendo passar a ser visto como o único e legítimo titular do poder constituinte. Sieyes distingue entre o poder constituinte, enquanto poder de criar uma constituição, e poderes constituídos, de natureza legislativa, executiva e judicial, criados pela constituição.

Nesta teorização de Sieyès, o poder constituinte originário é inicial, autónomo, omnipotente. Inicial, porque antes dele só existem poderes de facto. Nem a potestas eminens do Monarca, nem os iura quesitae, do clero e da nobreza, apoiados numa legitimação histórica ou no direito divino, podem sobrepor-se à legitimidade democrática do terceiro estado. Autónomo, porque só a ele pertence decidir quando e como é que se fará uma Constituição. Omnipotente, porque só a ele pertence decidir quais os valores, os princípios e as regras que devem ser consagrados na Constituição, não existindo qualquer limitação externa.  

Nunca, ninguém, tinha teorizado tal coisa.

O desenvolvimento político-institucional francês caracteriza-se pelo colapso da monarquia absoluta e do sistema feudal e esta mental em que a mesma se apoiava.

O legado francês para o constitucionalismo liberal inclui ainda o conceito material de constituição (art. 16º da DDHC), assente na defesa dos direitos fundamentais e do princípio da separação de poderes, a teorização do poder constituinte, a primazia dos direitos fundamentais, a prevalência de lei e a legalidade da Administração, a liberdade religiosa e a laicidade do Estado.

Mais, Sieyès precipitou os acontecimentos da revolução francesa, antecipou a transformação da assembleia do Terceiro Estado em Assembleia Nacional e colocou privilégios e privilegiados fora do contrato social.

Foi o primeiro a identificar o conceito de nação com o de povo, como corpo social unitário político de onde emerge a soberania. É uma fusão do conceito rousseauniano de vontade geral com a ideia de representação.

Foi o primeiro defensor daquilo que se designa por mandato imperativo na representação política, o qual confere representação da nação inteira a cada deputado e não apenas da sua circunscrição. Eis o primeiro esboço do princípio da primazia da representação nacional.

Pode também dizer-se, pois, que Siéyès é, historicamente, o pai fundador do constitucionalismo francês, assente, ainda hoje, na soberania nacional, democracia representativa e direitos do homem. Como afirmaram François Furet e Mona Ozouf: «O grande contributo da Revolução não foi inverter a substância das sociedades, mas seus princípios e seu governo. A monarquia absoluta de direito divino cedeu lugar aos direitos do homem» (Dicionário Crítico da Revolução Francesa, Ed. Nova Fronteira, 1988).

Sabemos como a  Revolução Francesa é considerada o berço da democracia na Europa, o marco de um prolongado progresso social da classe média, a fonte revolucionária da implantação de instituições e conceitos que ainda hoje subsistem na Europa, maxime: sufrágio, código civil, clubes políticos, soberania, o carácter universal de nação, constituição, direitos do homem, fraternidade, igualdade, liberdade, república revolucionária, constitucionalidade das leis, modernidade política e social, direita e esquerda, participação política (Freitas do Amaral, História das ideias Políticas, policopiado).

“A liberdade guiando o povo”, pintura de Delacroix.
Parisology: O encontro da Assembleia dos Estados Gerais em 5 de maio de 1789 em Versalhes
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